O objetivo do blog é divulgar os dispositivos alternativos na rede de Saúde Mental e propagar a ideia da luta antimanicomial. A partir da democratização da psiquiatria, os profissionais de saúde mental visam trabalhar de forma interdisciplinar no âmbito do novo contexto da psiquiatria renovada.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Hospício a céu aberto. Parte 1


Leitores de velhos romances do século XIX encontram com relativa facilidade, personagens encerrados pelas próprias famílias em porões ou sótãos escuros. Mais frequentemente, aparecem mulheres que perderam o juízo em decorrência de episódio traumático, cuja revelação costuma conter a trava da trama. Tais livros dizem algo importante sobre a forma pela qual a loucura era vista e enfrentada naquele tempo: em primeiro lugar, algo que pertencia exclusivamente à esfera da razão- "delusões", perda de comunicação ou, por vezes, "furores" que tornavam a convivência social problemática.Trancafiar os dementes era a solução possível pra quem habitasse casarões senhoriais, com criados discretos  e dedicados. Para a maioria das famílias, porém, os loucos eram mantidos livres, em convivência com a vizinhança ou entregues à própria sorte. Sua presença nas ruas do RJ do século XIX foi amplamente descrita por médicos e cronistas de costume da corte imperial.


Podemos seguir-lhes os passos, por exemplo, com Mello Moraes Filho em seu curioso inventário dos ”tipos de rua" da cidade do século XIX. O mais famoso deles por certo era o príncipe de Obá II d'África, entre tantos mencionados.Para prosseguir com a realeza das ruas, havia ainda outro famoso aristocrata negro, o príncipe Natureza -como era conhecido o negro Miguel, liberto falante e rebuscado, que se autobatizou “D. Miguer Manoer Pereira da Natureza, sová, Gorá, Vange".Tão popular que suas cômicas conferências chegaram a ser promovidas em teatros da região central por estudantes de direito, visando à obtenção de fundos para a sociedade Abolicionista.Talvez, sem saber, o príncipe Natureza foi responsável pela remissão de vários cativos. Famoso era também um português conhecido como Miguelista, cuja conduta escandalosa era, antes de tudo, motivo de risos e pândegas de molecada.Tinha de costume comum de embriagar-se  e o hábito (em todo caso incomum) de nessas circunstâncias, ficar completamente nu,batendo ruidosamente com as palmas das mãos nas próprias nádegas  a apregoar com toda força  dos pulmões: Vizinhas, estou na área!

Havia também, naturalmente, as mulheres. Maria Doida, mulata andarilha que vestia simultaneamente várias mudas de roupa para poupar-se de carregar trouxa muito pesada, era estimada e cuidada pelos cariocas, a quem fazia rir (e corar, aos mais recatados) com suas tiradas inconvenientes ou obscenas. Nem tão engraçadas, outras figuras, como a Forte-Lida, causavam antes piedade e respeito: tratava-se de uma viúva de meia idade e algumas posses que sem família que a cuidasse, perambulava pelas ruas sempre acompanhadas de uma escrava amarrada pelo pescoço. Outros personagens da mesma categoria incorporados à paisagem das ruas são descritos pelo nosso cronista. Como o Bolenga, crédulo na sua iminente sagração como bispo, ou seu colega, o padre Quelé, ex seminarista como ele, envergando batina, cujo notório entusiasmo onanista não impedia que fosse benquisto e reconhecido como um bom tocador de violão e cantor de Iundus, talentos que era frequentemente convidado a desempenhar mesmo em casas de família. 

Vale lembrar ainda o Policarpo, tido como homem íntegro e bom pai de família, músico da Capela Imperial durante os dias. Todas as noites, religiosamente do entardecer até meia-noite, caminhava com seu amigo Paiva no trajeto entre o passeio público e o Chafariz das Marrecas. Executavam todos os dias, nesse horário e percurso, uma mesma serenata cujo repertório se resumia a duas músicas repetidas obsessivamente, para torturados moradores das redondezas. Próximo ao local da exasperante serenata morava o famoso Chico Cambraia, louco familiar também apreciado pela sua maestria como cantor de Lundus, que vivia da caridade pública e residia precisamente na rua do Hospício-vizinhança que ao que tudo indica nunca o incomodou.

Fonte: A Revista de História da Biblioteca Nacional                         

2 comentários:

  1. Interessante!
    Bom de ler!
    Me remeteu a minha infância; aos loucos da minha infância, anos 80.
    Bené, tinha um dente da frente; Dente de furar uva. As mães o citavam para amedontrar as crianças desobedientes: "Vou chamar o Bené e ele vai te levar no saco"...
    Tinha a Máquina-de-arroz, mulher que andava nua nas noites de uma cidade do interior de Goiás, arredia, agressiva e semblante triste. Dormia no galpão onde era ensacado o arroz plantado pelos agricultores da cidade.
    Tinha a Madalena, sempre de vestido florido perambulava solitária; Diziam que ela enlouqueceu depois que seu filho de um ano morreu afogado numa bacia enquanto ela lavava roupa...
    Hoje, pessoas assim são mais do que histórias para mim; São pessoas, que eu convivo, trabalho e respeito profundamente.
    Que fim levaram essas pessoas? E que começo?

    ResponderExcluir
  2. Nossa Glenda, você fez me lembrar de um ícone na Zona Norte de São Paulo. Era um morador de rua apelidado de Bob Marley. Além da aparência com o cantor, ele se batia em todos os cruzamentos de rua. Quando via uma pessoa com um violão, ele contava o refrão famosa música "No waman, no cry".

    ResponderExcluir

Poderá também gostar de:

Related Posts with Thumbnails