O objetivo do blog é divulgar os dispositivos alternativos na rede de Saúde Mental e propagar a ideia da luta antimanicomial. A partir da democratização da psiquiatria, os profissionais de saúde mental visam trabalhar de forma interdisciplinar no âmbito do novo contexto da psiquiatria renovada.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Hospício a céu aberto. Parte 2


Alguns desses indivíduos, como o príncipe Obá, chegaram a alcançar uma invulgar notoriedade em que viveram. Castro Urso, por exemplo, foi um vendedor de bilhetes de loteria: doido caricato, muito feio e desajeitado, era frequentemente retratado nas folhas ilustradas do período. Emiliano, outro personagem desse tipo, tinha especial habilidade de imitar com a garganta o som de instrumentos de sopro e ruídos mecânicos. Era o que ele fazia nas ruas todo o tempo. Sua imitação de locomotiva era especialmente apreciada: valheu-lhe o apelido de Estrada- de -Ferro e até um contrato para realizar a sonoplastia no espetáculo teatral Viagem à roda do mundo, encenado com grande sucesso na Corte. 
 

Praia Grande, descrito como manso e delirante, vivia de esmolas e da atenção carinhosa das quitandeiras. Circulava entre o Largo do Paço e o Cais do Porto e chegou a ser personagem central de uma outra farsa teatral, intitulada O Filósofo do cais e o Praia Grande, encenada do Teatro de São Pedro. Além de se tornarem personagens centrais de espetáculos do teatro ligeiro, vários deles, em especial, Oba, Natureza e Castro Urso, costumavam aparecer pessoalmente no alto de "carros e críticas" de sociedades carnavalescas capitaneadas por jornalistas, escritores e comerciantes, desfilando sua extravagância. Ao mesmo tempo em que podiam ser objeto de riso, prestavam-se às persistentes metáforas políticas e às críticas sociais encenadas pelas grandes sociedades carnavalescas em seus préstitos anuais.

Nem por isso eles deixaram de preocupar certas parcelas específicas da sociedade. Na segunda metade do século XIX enquanto muitos personagens como estes perambulavam tranquilamente pelas ruas, a corporação médica começava a absorver os princípios de uma nova especialidade, já consolidada na Europa, mas ainda distante das praias brasileiras. O alienismo (nome que então se atribuía à medicina mental) ganhava corpo no Brasil, propondo ver a loucura como doença. Isto significa substituir a caridade que informava a antiga noção da "assistência" aos necessitados e permitia que loucos permanecessem em suas casas ou nas ruas, pelo confinamento "terapêutico". Protegia-se assim o doente e a sociedade, pois a loucura, dizia-se, tinha também um potencial de contágio. 

Nas últimas décadas do século XIX, no Rio de Janeiro da febre amarela, a idéia de uma epidemia de loucura funcionava como um eficiente antídoto contra o temor despertado pelas mudanças que se avizinhavam rapidamente. Reestruturar a polícia, organizar a cidade, higienizar a pobreza, isolar os loucos eram medidas que, juntas, configuravam um único sentido. Com a Proclamação da República, a concepção médica oficializou-se em uma ideologia de Estado, fortemente escorada na idéia de uma cientificidade fechada e inquestionável. Os hospícios proliferam por todo o país e o alienismo vê fortalecida sua abrangência e suas atribuições. Se a solução não chegava a ser um consenso, sem dúvida era o ponto de vista triunfante no início do século XX. Famílias entregavam seus "doidos" com um misto de vergonha e alívio (a primeira, causada pela teoria de que suas manifestações decorriam quase sempre de tendências hereditárias; a segunda, pela vã esperança de cura - ou, ao menos, de sigilo). Seja como for, a mudança de atitude é rápida e impressionante, desde o aparecimento do asilamento científico no país.

Fonte: A Revista de História da Biblioteca Nacional      

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