Assim que cheguei à casa fui apresentada aos moradores da Residência Terapêutica. Quase todos estavam presentes, era bem cedo e surpriendi-me com uma recepção muito boa. No início, não sabia como abordá-los. Ás vezes sentia-me deslocada por não saber o que dizer. Então pensei logo de início acompanhá-los durante as refeições. Deu certo (risos) as conversas que surgiam eram as mais imprevisíveis, aos poucos, eles ficavam mais à vontade em compartilhar as histórias de suas vidas comigo.
Esses usuários vieram obviamente de longos anos de instituições psiquiátricas. Dentre as quais, vale destacar, o hospital psiquiátrico em Jurujuba-Niterói no setor de Longa Permanência, mais conhecida como “a Longa". Além disso, há também o albergue no hospital, criado em 1991, um espaço de moradia para aonde iam aqueles que possuíam um certo grau de independência na "Longa". Apesar das dificuldades no início para a sua criação, na implementação de inúmeros projetos terapêuticos, o albergue passou a representar uma "casa de passagem" para uma residência terapêutica ou para um possível retorno às famílias.
Desde 2003 um longo trabalho vem sendo feito com a criação da Residência Terapêutica em que vários projetos terapêuticos individuais foram pensados para chegada de cada morador da casa. Quando comecei no estágio em 2009 alguns deles já moravam lá desde o início da casa. Ao longo de todo ano pude registrar muita de suas histórias no meu diário de campo que considerei fundamental para entender esse trabalho.
O tempo passava e cada vez mais eu conseguia enxergar o sujeito que havia por trás de relatos tão fragmentados. São eles psicóticos, a vida inteira marcada pelas instituições psiquiátricas, impedidos de exercer seus direitos de cidadania ,com uma dependência estabelecida dos muros do hospital. Porém, ao passarem a morar numa casa esses indivíduos puderam recriar suas vidas, se reapropriarem do espaço e para além dos diretos declarados na constituição, entendi que havia neles sonhos e esperanças.
Muito para além das "bizarrices" percebi aqueles sujeitos na produção plena de suas subjetividades.O que poderia parecer "doideira"num primeiro momento era sim a história real de um sujeito com passado, com família, desemprego , miséria e muitos desencontros. Certa vez um morador me contou um pouco da sua vida num tom emocionado dizendo o quanto foi difícil ele viver deambulando pela rua passando fome, desespero depois que seus pais morreram e ele passou a conviver com outros parentes que o puseram na rua. Ele conta que passou os piores momentos da sua vida até ser pego pela ambulância do Jurujuba.
Havia também um morador que me chamava muita atenção pela sua educação, falava de maneira formal e sempre se dirigia às pessoas apontando com dedo para cima num tom cerimonioso como se quisesse explicar algo. Ele usava termos sempre muito matemáticos, falava sempre da titia "que vem me visitar". Investigando, aos poucos, descobri que ele tinha nível superior e conseguiu se sustentar na profissão dando aula em faculdade, foi adotado desde pequeno, tinha bens e contava apenas como uma tia que tinha sua curatela.
Ele vinha de longos períodos de internação e entre idas e vindas de hospitais psiquiátricos esse morador contava agora com esse suporte social, a residência terapêutica. Na casa ele se identificava com os cadernos. O movimento de ida e volta com os cadernos na mão mostrando-me seus jogos da velha, revelava um sujeito profundamente ligado aos estudos. Comecei, então, fazer um trabalho de escritas, estimulando-o que escrevesse mais sobre ele mesmo. Muito bom, passava horas na casa escrevendo concentrado e talvez, naquele momento esse era o modo como se sentia na vida. Sempre que chegava a casa ele dizia: “Nércia, você quer ver o meu caderno de capa dura?”. Independentemente de a minha escuta estar mais para o "social", no acolhimento de algumas demandas deles relacionada a processos de curatela, passe livre, documento, enfim, de ver outras situações que não são diretamente da saúde mental, penso que de alguma maneira pude interagir e mediar algumas relações em questões mais simples do cotidiano deles.
Uma vez levei uma moradora para o Caps Heberts de Souza, no centro de Niterói. Saímos do Fonseca cedo e fomos conversando descontraidamente. Disse para ela que não iria descer porque tinha de estar no Hospital para encontrar a supervisora. Apesar da forma "atabalhoada" na hora de descer dizendo “motorista, para aqui, eu vou para o Caps!” ela seguiu tranquilamente o percurso até lá. Como se já soubesse, o motorista parou e sorriu. O curioso é que os passageiros me olhavam tipo: Ih! A moça vai descer ou não?
Vale destacar que, só fui perceber os usuários dos serviços alternativos na saúde mental através da faculdade e, portanto, no campo de estágio. Não que minhas concepções a respeito do tratamento ao portador de transtorno mental era de perigo e manicômio, mas essa questão da circulação dos usuários na cidade, na utilização dos serviços sociais comunitários, para mim é muito novo. Às vezes, de propósito pergunto a alguns amigos se sabem sobre Caps, RT ou oficina de geração de renda e artesanato. Em geral, nunca ouviram falar ou sabem vagamente. Sinceramente penso que é por causa ainda da ideia equivocada e estigmatizadora da loucura.
São necessários todos os dias desconstruir o preconceito, o medo e inscrever uma nova cultura na sociedade a despeito de tudo que os movimentos sociais, as propostas da Reforma Psiquiátrica vem consolidando ao longo de várias décadas no Brasil e no mundo. Temos de defender a implementação das políticas públicas em saúde mental articuladas com SUS, com a Seguridade e com todas as demais políticas de Estado. Anseio que a IV Conferência de Saúde Mental nesse ano resulte em ganhos que ainda continue sustentando a saúde mental mais democratizada e renovada.
No fim do estágio saí com alguns moradores para um passeio de despedida e num determinado momento um deles me disse acerca da residência terapêutica: “lá é para minha reabilitação, eu queria casar, ter minha casa”.
O significado de casa é subjetivo para cada um de nós, lá na residência não era diferente. Durante minhas observações pude constatar que “casa" para eles têm representações diferentes. Todas as vezes que chegava a casa um morador me dizia sempre: "minha irmã vem me pegar um dia”. Por trás dessa fala repetitiva num tom meio vago ele demonstrava a lembrança da sua família que ficou no passado, talvez esse seja o único referencial dele antes da longa internação. Depois investiguei, de fato essas irmãs existem, mas pelos processos no judiciário e pelas raras visitas parece que sua família não pretende pegá-la.
Uma moradora servia-me na bandeja cafezinho sempre quando eu chegava, estava organizando a casa, seu quarto, as coisas. Depois ela revelou-me: “eu já trabalhei em casa de família, venho de outro Estado, tenho filhos também".
Nem sempre a ausência da família era o problema, mas impossibilidade desses familiares da RT "suportarem" e entenderem seus sofrimentos. Quase todos têm benefícios, o dinheiro que é capaz de organizar suas vidas, mas nem sempre supre todas as demandas que não é só de ordem econômica. Eles tomam os remédios, mas não dão conta de todo sofrimento mental, ou seja, há uma enorme complexidade nesse tema.
Vale destacar também o trabalha fundamental das cuidadoras sociais. Tem um papel importante de mediar às questões mais simples do cotidiano dos moradores, desde levar ao CAPS até administrar as medicações. Ao chegar à casa, tive várias dúvidas a respeito do limite em que elas poderiam atuar. Se o morador estivesse delirante ou se precisasse receber uma intervenção mais firme, como fazer? Aos poucos, fui entendendo que elas não devem atuar como "empregadas" realizando os serviços por eles, e sim, lidar com cada um respeitando a sua individualidade. Para arrumar as camas, lavar a louça, descascar o alho, estender a roupa, entre outros, sempre havia a mediação das cuidadoras.
Houve uma cuidadora que me chamou atenção no seu trabalho. Ela estava sempre interagindo no dia-a-dia dos residentes. Se o morador estivesse triste ou a casa com uma alegria contagiante, ela fazia questão de estar inserida para tentar dar conta disso. Quantas vezes precisei dela para fazer uma melhor abordagem com os residentes. Outro dia, estava na cozinha conversando com a cuidadora e do nada chegou o morador, às gargalhadas, apontando para uma berinjela na pia. Surpresa, ela perguntou: "O que foi, fulano?". Ele responde: "Essa berinjela é muito engraçada". Embalamos em uma risadaria durante um bom tempo. Logo, há uma sensibilidade grande por parte da cuidadora. Ela tinha umas "sacações" legais parecendo saber o limite de fazer uma intervenção.
Terminei o trabalho em fevereiro de 2010 com muitas saudades. Desde março seguinte, fui selecionada novamente pelo Hospital Psiquiátrico em Jurujuba agora para estagiar no Albergue, dentro da instituição. O trabalho constitui nesta "casa de passagem” (tipo de moradia) para a residência terapêutica ou um possível retorno às famílias. Há 20 moradores e muitos projetos terapêuticos de saída para cada um deles. Contarei outras experiências futuramente.
Por uma sociedade sem manicômios! A luta não pode parar!
Marcelle
Marcelle,
ResponderExcluirQuero agradecer a contribuição do seu testemunho referente a essa sua vivência RT;
Estou há um mês nesse trabalho e ainda meio perdida; Logo, me sentir confirmada através da sua experiência foi motivador.
Parabéns pelo seu trabalho.
Abraços
Glenda Dias
como faço para citar como referencia este blog?quem e o autor do saudementalcidadania e de qual cidade?
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirMeu nome é Marcelle Trindade, sou Assistente Social, servido pública e tive uma atuação em todo o meu período de estágio no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, em Niterói, onde também resido.
Os contos aqui do blog são fatos reais desse experiência magnífica na saúde mental. Para citar o blog, segue modelo abaixo:
BEZERRA, M. T. Blog Saúde Mental e Cidadania. Outras histórias da psiquiátria (Diário de Campo - residênia terapêutica em Niterói). Disponível em http://saudementalecidadania.blogspot.com/2010/04/outras-historias-da-psiquiatria-diario.html . Acessado em (data de acesso).
Abraços