O objetivo do blog é divulgar os dispositivos alternativos na rede de Saúde Mental e propagar a ideia da luta antimanicomial. A partir da democratização da psiquiatria, os profissionais de saúde mental visam trabalhar de forma interdisciplinar no âmbito do novo contexto da psiquiatria renovada.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ALGUMAS LIMITAÇÕES NO TRABALHO COM A FAMÍLIA DE BAIXA RENDA - Parte 2

No dia-a-dia da abordagem com a família, vários riscos permeiam a atuação do profissional. O primeiro é ele se dispor a fazer um trabalho com a família sem o devido preparo teórico-metodológico e ético. Nesse sentido, ele pode se sentir como “doutor em família”, por ter vivido e sofrido a vida toda a influência das relações familiares. Desse modo, “naturalmente”, pode acreditar que entende de família.

A ação conjunta de dois ou mais profissionais de diferentes categorias também pode trazer problemas. Se todos não tiverem preparo mínimo e maturidade, podem reproduzir conflitos que a família vivencia. Podem entrar em um jogo de disputa por competência ou para angariar a simpatia da família.


É comum em um serviço de saúde, até em um CAPs, a família sentir que não foi atendida se não falar ou passar por uma consulta com um psiquiatra, mesmo tendo sido assistida por todos os demais profissionais da equipe de nível superior. Às vezes, a atuação desses profissionais é mais intensa com os cuidadores domésticos, mas é comum, em reuniões ou assembléias, estes elogiarem ou reconhecerem publicamente apenas a ação médica.

Em muitos serviços, além dos vínculos precários de trabalho e dos baixos salários, há um baixo nível de recompensa simbólica, como o reconhecimento pelo trabalho realizado, que os profissionais esperam e muitas vezes não têm, da parte dos cuidadores domésticos. Não é rara a decepção e a fala indignada de profissionais que não se sentem reconhecidos. É preciso maturidade, bom senso e, acima de tudo, comportamento ético para enfrentar essa situação.

Os conflitos interprofissionais também podem ser reproduzidos na intervenção com os familiares/cuidadores, quando os profissionais querem apresentar soluções e mostrar-se úteis para a família. Muitas vezes as disputas acabam reproduzindo conflitos vivenciados entre os membros de cada grupo familiar. A carência afetivo-simbólica do profissional pode acabar se sobrepondo às necessidades das pessoas e grupos vulnerabilizados.

É necessário muita auto-vigilância nas práticas com a família. O espaço das supervisões é fundamental para equacionar divergências entre categorias profissionais e para apontar conflitos interpessoais. Outro aspecto importante é a relação com famílias de baixa renda. Poucos profissionais são capacitados academicamente para trabalhar com a família e, quando o são, parte significativa está preparada para lidar apenas com a família de classe média, de consultório, em uma realidade próxima à de sua experiência pessoal.

Nesse contexto, quando o profissional olha para a família dos segmentos de baixa renda, em estado de crise, muitas vezes só consegue ver desorganização, desestruturação. Mas é justamente nessa situação que ela busca um profissional ou um serviço de saúde mental. O profissional está pouco habituado a entender códigos culturais, lingüísticos e comportamentais que não sejam os de sua classe social, confundindo pobreza econômica e material com pobreza cultural.

Os familiares/cuidadores, em geral, trazem para os profissionais e serviços de saúde, além da crise psiquiátrica, todos os seus problemas existenciais. A crise psiquiátrica apenas intensifica os dramas vividos pelas famílias, vulnerabilizadas pelo contexto de pobreza e exclusão/destituição social.

Nessas circunstâncias, o profissional corre o risco de só ver pobreza e impotência, ficar paralisado como a família e não vislumbrar outras possibilidades. Na crise, o grupo familiar costuma mostrar toda sua fragilidade, mas podem também aflorar capacidades que às vezes não se consegue identificar. É o momento em que o profissional pode observar a dinâmica familiar de forma exponenciada, na solidariedade ou na ausência dela, nas tentativas de encontrar saídas, nos recursos ou na falta deles. É também o momento de observar se a família conta com uma rede social com oportunidades para obter suporte.

Diante da família em crise e que quer transferir a resolução de seus problemas para aqueles que “estudaram e entendem disso” (do cuidado com o PTM”), é comum o profissional se ver diante do dilema de ter que dar uma resposta, seja qual for, até para aliviar sua própria angústia ou demonstrar competência para lidar com o caso que tem diante de si.

Para o médico, parece ser mais tranqüilo prescrever uma medicação ou requisitar um exame. Para os demais profissionais, existe a tendência de utilização dos recursos da comunidade, que muitas vezes assume uma postura de transferência de responsabilidade, e não de compartilhamento de soluções. A família cuidadora coloca o profissional como o solucionador de problemas familiares, e muitos profissionais incorporam tal encargo.

Ao assumir o exercício da profissão como “doutor”, a atenção pode deslizar para uma atitude autoritária, caso o profissional considere que sabe tudo e, por isso, pode tudo resolver, sem dialogo e interlocução com a família/cuidador, tendo uma resposta para todas as questões, a fim de se manter nesse lugar. Essa atitude autoritária permeia as intervenções e coloca o profissional como única pessoa capaz de solucionar os problemas. Daí também a prática do “aconselhamento” ser generalizada. Freqüentemente o profissional acha que sabe o que é melhor para todas as famílias que chegam a seu consultório/serviço ou se encontram sob sua responsabilidade.

Nesse horizonte, é importante registrar as reações do profissional, ao se deparar com o grupo familiar e seus problemas. Cecchin (2000, p. 73) aponta cinco respostas básicas do profissional em relação à família:
• ele tem necessidade de se tornar útil para a família. Nesse cenário, quanto mais é útil, mais a família se sente inútil, desamparada e impotente, pois não constrói novas soluções para seus problemas;
• alguns se colocam como professores, prescrevendo comportamentos, “aconselhando” sem a família/cuidador ter solicitado. Nesse sentido, quanto mais for professoral, menos a família/cuidador aprende e menor qualidade interacional existirá entre ambos;
• o profissional deseja controlar o grupo, disciplinar o processo interativo, deixando os membros dependentes ou apáticos;
• o profissional quer proteger as pessoas, percebidas por ele como desorganizadas, infelizes, desestruturadas, e toma para si a tarefa de reorganizar e cuidar do grupo. Nesse sentido, não há um aprendizado do grupo na resolução de seus problemas;
• o profissional manifesta, consciente ou inconscientemente, o desejo de punir a família quer dar uma lição a quem ele considera um mau marido, má mãe, má filha, mau cuidador.
Nas formas acima esboçadas de oferecer resposta ao grupo familiar/cuidador, o profissional arrisca-se a exercer a cruel compaixão (Szasz, 1994), pois, sob pretexto de auxiliar o grupo a sair de sua crise, substitui o papel dos membros da família, subtrai a competência própria da família, desconsidera os recursos e a necessidade da família de construir sua história e sentir-se suficientemente capaz para resolver suas questões.

Assim, como visto, embora permeado por limitações, o trabalho com a família nos remete a reflexões que podem apontar possibilidades e desafios.

2 comentários:

  1. Olá...
    Parabéns pelo blog, heim!
    Sou estudante de serviço social pela universidade estadual do ceará e também acho essa uma área fascinante! Agora tô dando os passos iniciais do meu trabalho de conclusão de curso que aborda exatamente o tema desse post: o trabalho com familias na saúde mental!

    Abraço e dê continuidade a essa iniciativa!

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  2. Olá muito bom este texto este é o cotidiano que estamos inseridos no caps juntamente com usuários, famílias e comunidades do entorno. Este texto nos refletirmos sobre nas práticas e intervenções e cuidados que devemos ter de sermos éticos e respeitando o usuário no seu contexto. Gostaria de ter retorno e indicações de referências bibliográficas sobre este temas especifico. Parabéns boa contribuição.

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