Nos últimos anos é visível como a reforma psiquiátrica vem avançando no país, desde discussões mais afinadas acerca dos fundamentos históricos e conceituais da proposta de reforma em curso, até a análise crítica de seus principais dispositivos de intervenção, das conquistas e dos impasses que trabalhadores, gestores, usuários e familiares têm enfrentado no sentido de fazer avançar processos de desinstitucionalização requeridos, mas não garantidos, pelo aparato jurídico/estrutural da legislação vigente.
É possível reconhecer também que há uma sensibilidade mais aguçada que nos leva a reconhecer que a reforma psiquiátrica está articulada à produção de novos modos de subjetivação, pressupondo práticas de cuidado diversas das predominantes no modelo asilar, bem como a ruptura da lógica tutelar a ele associada. Esse reconhecimento parte do pressuposto de que a loucura se encontra confinada em saberes e instituições psiquiátricas, e em função disso, as inúmeras possibilidades da loucura enquanto radicalidade da alteridade são reduzidas a um único significado: doença mental.
Sabemos, portanto, que daí derivam as práticas de controle, tutela, domínio, normatização e medicalização, tão evidentes em nosso cotidiano. A manutenção dessas práticas, a produção de novas formas de controle cada vez mais sutis e eficazes, assim como a dificuldade de produzir interferências nesse âmbito, tudo isso vem sendo descortinado dia após dia. Queremos mudar, mas esse querer vai sendo enfraquecido, pois também está atravessado por uma lógica, aqui entendida como marcas invisíveis que produzem formas de subjetivação, que se expressa através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar a vida (Machado e Lavrador, 2001). Trata-se, pois, de uma cultura manicomial, dos nossos manicômios mentais (Pelbart, 1990). Isso indica claramente que a reforma psiquiátrica não se restringe a uma ordem macropolítica. Clausuras subjetivas nos habitam e são muito poderosas.
Acreditamos que há também lampejos em nossa compreensão atual de que não é para recuperar socialmente nem para retomar a normalidade perdida que a luta antimanicomial deveria operar, mas produzir novas formas de sociabilidade, reorientar nossas vidas a partir da mistura de diferentes códigos, romper os sentidos de mundo que a época nos impõe, produzir fissuras na ordem mundial, na hegemonia, na monotonia, constranger as linhas de força que operam hegemonicamente e que nos faz cada vez mais silenciosos, obedientes, dóceis e conformistas.
Com base nesses princípios tentamos contribuir com o debate nacional gerando interlocução com atores sociais envolvidos na luta antimanicomial que produzem interferências decisivas nos rumos do processo de reforma psiquiátrica. Esses atores, independente da condição de gestores, pesquisadores, trabalhadores de saúde mental, usuários, familiares, etc, constituem um coletivo que insiste na sustentação de uma utopia e na não conformação com as atuais promessas enganosas do hospital psiquiátrico humanizado, reformado, maquiado (Amarante, 2007).
Nesse intuito, queremos “botar lenha” na utopia, fomentar estratégias de resistência e criação no campo da saúde mental que venham ampliar nossa capacidade de análise e intervenção junto aos coletivos de trabalho, assim como contribuir para a produção de novos modos de operar a política de saúde mental que sustente e faça avançar a luta antimanicomial. Consideramos que para fazer um movimento social amplo e complexo acontecer, tal como se apresenta a reforma psiquiátrica, precisamos empreender uma guerra contra essa política de subjetivação que exige consensos, razoabilidade e, em contrapartida, promete segurança, bem-estar, pacificação, conforto, operando pela via do medo e da esperança.
É necessário para tanto operar críticas em dois âmbitos: um questionamento no campo científico, no qual a loucura enquanto doença mental é produzida pelo saber psiquiátrico, tendo um arcabouço técnico para tratá-la, e de outro, no âmbito da configuração social, onde as práticas científicas e os ideais modernos sustentam as formas de enclausuramento e silenciamento da loucura.
Magda Dimenstein Mariana Liberato
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN
Nenhum comentário:
Postar um comentário