Foi só na década de 80 que o movimento pela reforma psiquiátrica, no Brasil ganhou importância, tanto política como social. Tal período, marcado pelo final da ditadura, abriu a possibilidade de mudanças no setor da saúde e permitiu a participação de outros setores, que não os médicos, nesse processo. Ganhou ênfase também uma série de críticas às noções de clínica e cidadania, ambas ancoradas em uma concepção universal de sujeito, em que a normalidade deveria ser reconstituída. Para Birman (1992), a construção de um novo espaço social para a loucura exigia que a noção de cidadania e a base do saber psiquiátrico fossem colocados em debate. Era preciso inventar novos locais, instrumentos técnicos e terapêuticos, como também novos modos sociais de estabelecer relações com esses sujeitos.
Nessa trajetória, a influência da psiquiatria democrática italiana, a partir de meados dos anos 80, ganhou força no país. Este movimento propunha o questionamento da suposta universalidade do racionalismo científico das psiquiatrias, desvelando sua pretensa neutralidade. Novos protagonistas, como usuários e familiares, aumentaram o coro de reivindicações por outras possibilidades de atenção, espaços e avanços técnicos. Corroboraram esta tendência, a implementação de experiências de hospitais-dia; a inserção do movimento psicanalítico em vários setores, a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro, em 1987, considerada um marco histórico na psiquiatria brasileira; a criação do Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz Cerqueira, em São Paulo, no mesmo ano; a intervenção, em 1988, na Casa de Saúde Anchieta, em Santos e o Projeto de Lei do deputado federal Paulo Delgado.
Nos anos 90, assistimos a criação e consolidação de propostas como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Lares Abrigados, etc., embora, desde os anos 80, algumas experiências já estivessem sendo desenvolvidas (Venancio, 1990) e apesar do fato dos hospitais psiquiátricos ainda absorverem a maior parte das verbas destinadas à assistência em psiquiatria (Alves, 1994). A esta década parece ter ficado o papel de, efetivamente, implementar novos dispositivos, sem perder o compromisso da reflexão e do fluxo constante de avaliações, sem os quais corre-se o risco de produzir novos enclausuramentos e novas hegemonias.
Algumas Reflexões Sobre o Conceito de Autonomia
A palavra autonomia é originada do grego para designar a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, de se auto-realizar, de autos (si mesmo) e nomos (lei). No Dicionário encontramos: autonomia. sf 1. qualidade ou estado de autônomo, independente, livre. Autonomia. 1. faculdade de se governar por si mesmo. Autonomia significa então auto-construção, autogoverno. A discussão travada em torno deste conceito é recente e encontra-se em outras instâncias da sociedade como autonomia na escola, autonomia operária, autonomia institucional. Contudo, no campo da saúde mental o conceito parece recobrir-se de sentidos imprecisos. Como lidar com este tema quando se trata de sujeitos destituídos de todo e qualquer valor ao receber o atributo de doente mental? Outra pergunta que pode ser feita é se as instituições que utilizam novos dispositivos assistenciais, contrários àqueles do tradicional manicômio, propiciam a produção de autonomia para os usuários que se beneficiam do tratamento?
Parece que o ponto nodal está em definir o que pode ser entendido como autonomia para nós e para a clientela assistida. De acordo com Leal a produção de autonomia pode ser caracterizada em duas vias: Primeiro o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação (Leal, 1994:153). Outra questão diretamente interligada ao tema diz respeito à possibilidade de repensar o processo de cura em psiquiatria a partir da discussão de uma autonomia possível. Dessa forma, entra em cena também a polêmica entre autonomia e tutela. Segundo Delgado (1992), todo cuidado implica um grau de tutela, todo serviço de caráter protetivo, tem a função de tutela. Entretanto, as atuais modalidades assistenciais não visam mais a adequação a um padrão único de subjetividade, seu sentido sendo bastante diferente daquele instituído pela clínica clássica.
Pode-se observar que no Brasil, a tradição de pesquisa sobre a produção de autonomia é ainda muito recente, principalmente na área com a qual estamos lidando. Um dos impasses é como avaliar ou quais critérios eleger para que a realidade possa ser retratada sem que seja reduzida a padrões universalizantes e reducionistas. Observa-se atualmente, a realização de alguns estudos (Pitta, 1997) sobre o assunto pautado na definição e avaliação de critérios chamados pragmáticos e apragmáticos, como autonomia para higiene, alimentação, medicação, ir e vir, trabalho e relações sociais (família, amigos, grupos sociais). No entanto, quando se trata de uma clientela específica como é o caso dos sujeitos psicóticos, a adoção de tais critérios não nos parece suficiente.
Assim, uma concepção possível para autonomia seria pensá-la como o momento em que o sujeito passa a conviver com seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assistenciais do próprio serviço. Assim, caberia à instituição funcionar como um espaço intermediário, um local de passagem, na medida em que possibilitaria aos usuários um aumento de seu poder contratual, emprestando-lhe, segundo Tykanori (1996), sua própria contratualidade. Importa menos, neste sentido, criar e impor critérios de autonomia para esta clientela, mas observar qual seria o lugar ocupado pela questão no interior de uma nova perspectiva de atenção à loucura, como a instituição a concebe e promove no cuidado de seus usuários.
Fonte:
Núbia Schaper SantosI, *; Patty Fidelis de AlmeidaII, **; Ana Teresa VenancioIII, ***; Pedro Gabriel DelgadoIII, ****
I Universidade Federal de São Carlos
II Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz
III Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia - RJ